01 junho, 2016

Estupro, Aborto e Pena de Morte


Querido diário:

Alguns anos atrás, meus leitores ouviam-me (?)  falar (?) em Samuel Bowles e seu livro de microeconomia, que me parece uma das mais lavradas joias do escrínio econômico (!). Em compensação, ainda mais atrás, eu produzi tessituras e urdiduras ainda mais estonteantes relativamente a Umberto Eco e as três ou quatro obras de sua autoria que li. Destaco:

ECO, Umberto (1984) Viagem na irrealidade cotidiana. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.

Tê-lo-ei lido (eu, hein?) na primavera de 1985 ou -who knows?- no verão de 1986. O fato é que o coroa virou-me a cabeça. Nem sei bem o que eu queria, ao lê-lo, talvez virar antropólogo, semiólogo, sei-lá-lôgo... De onde veio ele? Minha colega Maria Lucrécia Callandro cedeu-mo (!) e tanto anotei nele que implorei a ela por reciclagem, transformando o empréstimo em doação, com o quê ela acedeu. Doce professora. Para dizer o mínimo do livro, foi ali que se deu meu contato inicial com o tema dos hologramas, da holografia, coisa que até hoje me extasia.

Pois então. Também já falei declarar-me incapaz de ler todos os livros do mundo, mas ainda não tendo perdido as esperanças de reler todos os que já li. No caso, volta e meia, mexo daqui e dali em minha biblioteca. Pois então é que, ao mexer para cima e para baixo nesta " Irrealidade", caí agora no capítulo "Diálogo sobre a pena capital", das páginas 156 a 161.

O diálogo é uma ficção, dupla, múltipla, ficção entre Umberto Eco e Renzo Tramaglino. Na primeira vez que aparece este nome, o bondoso tradutor colocou um rodapé:

Renzo Tramaglino, protagonista da obra-prima de Alessandro Manzoni, Os Noivos, cuja ação se passa no século XVII. Lucia, filha de Agnese, é sua noiva, cobiçada por D. Rodrigo, poderoso do lugar, e raptada pelo Griso, seu assecla. Dr. Desmancha-rolos é o rábula a quem Renzo recorre para resolver uma questão de direito.

Ou seja, estamos inferindo rapto, estupro e ódio. Tudo exalando o pútrido hálito da morte. Iria eu fazer um resumo. Decidi a transcrição literal

DIÁLOGO SOBRE A PENA CAPITAL

ECO: Vejo que anda preocupado, Renzo Tramaglino. O que atormenta a sua existência já tão tranquila agora, na paz da lei e da ordem? Quem sabe Lucia, tocada pelos novos anseios ditos "feministas", lhe nega os prazeres do tálamo, assumindo o próprio direito à não-procriação? Ou Agnese aplicando beijos demasiado intensos na bochecha dos seus filhos escava-lhes impropriamente o inconsciente, tornando-os indolentes e mother oriented? Ou será o Desmancha-rolos que, falando de convergências paralelas prejudica a sua capacidade de intervir na coisa pública? Ou D. Rodrigo, que, impondo a taxa máxima sobre a renda, obriga-o a pagar impostos superiores àqueles do Inominado, o qual transfere dinheiro para as terras de Bérgamo?

RENZO: 
O que me deixa preocupado, cortês visitante, é o Griso. Este organizou agora bandos de malfeitores iguais a ele, e, com a proteção de desonestos atravessadores, continua raptando donzelas só para arrancar com isso polpudos resgates e, ao obtê-los, mata-as barbaramente. E, onde os honestos juntam suas fortunas, ele intervém, com o rosto coberto por uma meia, r rouba, e saqueia, e faz novos reféns, atemorizando as cidades, hoje teatro de crimes desvairados, enquanto os cidadãos ficam tremendo e os esbirros, imponentes, não conseguem frear esse aumento de delitos, e os bens, os honestos se perguntam aflitos onde iremos parar.

E eu, que sou até jovial e pacato, eu, que comungava com as teses de um grande destas terras, o Beccaria, o qual demonstrara de uma vez por todas que o Estado não poderia ensinar a não matar através do homicídio legal, eu estou aflito. E me pergunto se não se deve restaurar a pena de morte pra tais crimes odiosos, para proteger o cidadão indefeso e para advertir os que quisessem lhe fazer mal.

ECO:
Entendo você, Renzo. É humano que diante de atrozes vicissitudes que roubam jovenzinhas aos amados genitores pareça natural o pensamento da vingança e da defesa a todo custo. Eu também sou pai e, frequentemente, pergunto a mim mesmo o que faria se, morto meu filho por raptores desconhecidos, viesse a por as mãos no culpado antes da polícia.

RENZO:
E o que faria, então?

ECO:
Logo de saída, iria querer matá-lo. Mas frearia o meu impulso, achando muito mais tranquilizantes para minha dor exasperada uma longa tortura. Eu o levaria a um lugar seguro e começaria a trabalhar seus testículos. Depois as unhas, enfiando varetas de bambu, como dizem que faziam povos orientais cruéis. Depois arrancaria suas orelhas e supliciaria sua cabeça com fios elétricos desencapados. E, após esse banho de horror e de sangue, teria a impressão de que a minha dor, se não aplacada, estaria saciada em sua ferocidade. E me abandonaria ao meu destino, sabendo que nunca mais minha mente poderia readquirir a paz e o equilíbrio de antes.

RENZO:
Está vendo, então...

ECO:
Sim, mas logo me entregaria aos guardas, para que me algemassem e me dessem punição exemplar. Porque eu teria mesmo assim cometido um crime ao tirar a vida de um homem, coisa que não se deve fazer. Seria justificação minha o fato de que entre a dor de um pai enlutado e a insânia há pouca diferença e entraria com um pedido de indulgência parcial. Mas nunca poderia pedir que o Estado me substituísse, mesmo porque o Estado não tem paixões pra satisfazer, mas deve apenas reiterar o fato de que tirar uma vida é, em  qualquer caso, um mal. E, portanto, o Estado não poderia tirar uma vida para ensinar que é errado tirar a vida.

RENZO:
Conheço esses argumentos. O retorno da pena de morte é pedido por indivíduos suspeitos que exigem a ordem como terror pra poderem reinstaurar o período da prepotência. Mas, dias atrás, li num dos mais importantes jornais da região um longo e pacato artigo de um severo filósofo que, após avaliar as questões em causa, pergunta de si para si, com sutis preterições, se não é lícito, diante de crimes tão graves, restaurar com a autoridade do Estado o direito à aplicação de penas supremas, para a tranquilidade e proteção do cidadão. De fato, a pena de morte tem pelo menos um valor de intimidação, pois incute medo em outros delinquentes enquanto os cárceres de hoje, locais de amenas reeducação e fáceis evasões, já não conseguem deter a mão homicida de ninguém.

ECO:
Esses raciocínios chegaram aos meus ouvidos. E têm o jeito de persuadir todo mundo. Mas você talvez não conheça um outro filósofo que muito ensinou a todos nós e também aos filósofos que clamam pela volta da pena capital. Foi um certo Kant, que lembrou que os homens devem sempre ser usados como fins e não como meios...

RENZO:
Sublime prescrição.

ECO: 
Então, se eu mato Fulano para dar um aviso a Sicrano, não estou por acaso usando Fulano como meio para avisar Sicrano, para defender todos os demais das possíveis vontades de Sicrano? E se é lícito que eu use Fulano como missiva para Sicrano, por que não seria lícito usar Samuel para produzir sabão para Adolf?

RENZO:
Mas há uma diferença. Fulano cometeu um crime e é justo que seja punido com pena igual, não por vingança, mas por justiça equitativa. Samuel é inocente. Fulano não.

ECO: 
Mas então você não pensa mais que fulano deva ser morto para atemorizar Sicrano, mas simplesmente que Fulano deve sofrer na proporção do sofrimento causado.

RENZO:
As duas coisas ao mesmo tempo. Estou autorizado a usar Fulano como meio pra que, tornado indigno de ser considerado um fim em si mesmo, a sua morte sirva para evitar outras e todos saibam que se sofre aquilo que se faz sofrer.O Estado é a garantia dos cidadãos através da severa balança das leis. E se para garantir a segurança parece útil a abstrata, rigorosa e sublime pena de talião, seja bem-vinda, porque contém germes de antiga sabedoria. O talião do Estado não é vingança, é geometria.

ECO: 
Não desprezo a sabedoria antiga.Agora diga-me, ó Renzo: uma vez que você tem essa visão severa e super-humana da lei, e admite que a morte aplicada pelo Estado não é assassínio, mas distribuição equitativa, se o Estado o escolhesse, por sorteio ou rodízio, para aplicar a morte em quem matou, aceitaria?

RENZO:
Não posso dizer que não. E minha alma estaria tranquila. Quem quer que sustente a pena capital deve declarar-se pronto a aplicá-la, se pedido pela comunidade.

ECO:
Agora diga-me, não há outros delitos tão odiosos e terríveis quanto o homicídio? O que diria de quem, em vez de matar o seu menino, praticasse nele, com violência desumana, atos de sodomia, transformando-o para sempre num desequilibrado mental?

RENZO:
Seria um crime igual, se não pior.

ECO:
E se o princípio de talião do Estado fosse válido, não se deveria, com os abalizamentos da lei, praticar nele, e violentamente, sodomia?

RENZO:
Agora que me levou a pensar nisso, claro que sim.

ECO:
E se o Estado lhe pedisse, por rodízio ou sorteio, que aplicasse nele a violência sodomítica, assumiria tal empresa?

RENZO: 
Ah, não! Não sou um maníaco sexual!

ECO:
Por quê? Por acaso você é um maníaco homicida?

RENZO:
Não me confunda. Digo que esse segundo gesto me causaria mal-estar e repugnância.

ECO:
E por quê? Por acaso o primeiro lhe daria prazer e sádica alegria?

RENZO:
Não me faça dizer o que eu não disse. É que matando não prejudico a mim mesmo, ao passo que, praticando um ato que me repugna, só sentiria enfado e dor. O Estado não pode pretender que, para punir um malfeitor, eu tenha que sofrer.

ECO:
Ou seja, está dizendo que não quer ser usado como meio.

RENZO:
É claro que não!

ECO:
No entanto usaria um homem vivo, ministrando-lhe a morte, como meio de intimidar outros homens.

RENZO:
Sim, mas ele, por ter cometido o mal, é menos homem que os outros... Ou não?

ECO:
Não. E inquieta-me o fato de que os que estão dispostos a considerar esse sujeito menos homem, ao contrário, lutem contra as práticas abortivas, dizendo que um homem é sempre um homem mesmo quando não passa da proposta de um feto. Não estão eles em contradição?

RENZO:
Você me confunde as ideias. E a legítima defesa?

ECO:
Ela vê frente a frente dois homens, um dos quais tenta reduzir o outro a um meio e o segundo deve evitar o abuso. Se possível, sem matar o outro, mas, se necessário, impedindo o outro de praticar o mal. E, nesse caso, entre o direito do inocente e o direito do culpado, o primeiro prevalece.

Mas o Estado que executa o culpado não o impede de cometer o ato e simplesmente, repito, usa-o como puro meio. E, uma vez que se usa um homem como meio, admitindo que há homens menos homens que os outros, cai a própria essência do contrato sobre o qual se rege o Estado. E, com efeito, a questão do aborto não indaga se é lícito matar um homem, mas se um feto é um homem e se, proposta informe no fundo do útero, já está submetido às leis do contrato social ou não é propriedade do ventre materno.

Mas um homicídio, inserido no contrato social, é um homem para todos os efeitos. E, se o considerar menos homem que os demais, amanhã você poderá considerar menos homens os que ousam defender a pena de morte e até propor a morte deles para arrancar os outros de tais insanos propósitos.

RENZO:
Mas que devo fazer então?

ECO:
Pergunte a si mesmo se D. Rodrigo, em seu palacete, não controla a máfia de atravessadores, transferindo dobrões para Bérgamo e encorajando o Griso a arrecadar dinheiro por meio de homicídios.

RENZO:
Mas mesmo que viesse a descobri-lo?

ECO:
Você entenderia que Griso no patíbulo não garante a vida de seus filhos, porque não atemorizaria nem um pouco D. Rodrigo.

RENZO:
E o que o atemorizaria?

ECO:
O tiranicídio. Mas esta é uma outra conversa.

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