21 dezembro, 2014

Os Menos Aquinhoados


Querido diário:

Parece que inicia-se neste domingo ou -melhor ainda- mañana o tempo da solidariedade natalina. Eu mesmo, que fico rindo da cara do prefeito em deixar tanta gente na rua (e devo admitir que o número de crianças desvalidas reduziu-se significativamente), tomo-me de amor pela humanidade e fico pensando nos menos aquinhoados. Ontem, ao circular do Menino Deus ao Centro de Porto Alegre, vi umas dez ou 20 pessoas em condição de alto risco. Ou dormiam pelo chão ou mendigavam estipêndios natalinos (ou de outra natureza).

E aí fiquei pensando em quanta gente presta solidariedade (de diversas maneiras, cada um com a/s sua/s) aos menos aquinhoados. Minha atitude com relação a eles é desejar sua extinção, ou seja, intervenções por parte da sociedade organizada de sorte a reduzir os diferenciais no nível de consumo entre os menos e os mais aquinhoados. E sobrevieram-me duas questões:

.a. e que tal solidariedade com os mais aquinhoados?
.b. e que tal quem é que deveria fazer tais intervenções?

A solidariedade com os mais aquinhoados também deve ser defendida. Ou melhor, devemos ser solidários com todos os seres humanos, mais ou menos aquinhoados. O quinhão não deve ser o critério demarcatório da solidariedade. Mas o ponto não é a ausência de solidariedade com os mais aquinhoados, por exemplo, devemos rejeitar a ideia de rico batendo na mulher (do rico), mulher do rico batendo na criança (do rico), rico ser assaltado, rico ter seu neto assassinado por outro ser humano de maior ou menor quinhão. A lista é infindável. Inclusive o recurso retórico que muito usei em sala de aula: quanto pagarias para alguém que evitasse que teu bisneto seja assassinado por um menino de rua? O bisneto ainda não existe, nem seu virtual assassino. É que o bisavô já foi vítima de tão contingente sina. Vivendo e aprendendo.

E que negócio é este de "quinhão"? Parece óbvio que estamos falando da distribuição da renda. Olha o aurelião:

Quinhão: a parte de um todo que cabe a cada um dos indivíduos pelos quais se divide; partilha, cota. E também figuradamente, sorte, destino, fado. É os dois, mano! Eu falo na parte do todo chamado de valor adicionado mensurado pela ótica da renda. E aliás, falo mais que isto, pois também penso nesta questão de transações interinstitucionais, como é o caso da cobrança de imposto de renda e do pagamento de pensão a trabalhador acidentado. Em outras palavras, estou falando essencialmente da magnitude da receita (renda mais transferências) das famílias.

Passemos à pergunta sobre quem deveria fazer as intervenções que levariam a que se prestasse solidariedade aos menos aquinhoados? Isto é, que reduzisse os diferenciais de consumo entre estes e seus antípodas sociais? Já se observam ações das famílias: pai sustenta filho, filho sustenta pai, amigo (Engels) sustenta amigo (Marx), e por aí vai. Este tipo de ação pode expandir-se -e o faz- com as organizações não governamentais, com esmolas de indivíduo a indivíduo, com tudo isto.

E fica ainda espaço para a ação benemerente do setor privado: oferecer bolsas de estudo a jovens, dar almoço a outros, ajudar de várias outras maneiras. E o setor público?

O lado alegre da ajuda que o setor público pode dar é o do gasto: gastar na provisão de bens públicos e meritórios, o que significa desviar recursos da produção de bens regulares (digamos, cuecas) e bens de demérito (não escondamos, crack) e inseri-los na estrutura da demanda final. Mas não é apenas isto. Ainda assim, a polêmica é acesa.

E que mais, além daquilo que não era apenas isto? É a tributação, que pode ser sobre o PIB (impostos indiretos líquidos de subsídios) ou sobre a receita (imposto de renda e mesmo impostos sobre a transmissão de bens inter-vivos ou heranças). Neste caso, então, é que há mais rejeição das sociedades em geral e da brasileira contemporânea em particular. Por exemplo, duvido que algum jornalista (de respeito ou não) discorde das diversas indicações de que o Brasil é um país de desigualdade revoltante. Mas duvido que exista unanimidade quanto à necessidade de se mudar a estrutura tributária nacional, transformando a receita em preponderantemente derivada dos impostos diretos, o de renda e o de transmissão. E até o imposto sobre a riqueza. No caso, por exemplo, dos senhores delatores do petrolão, não deveriam eles pagar imposto sobre a riqueza que depositaram em bancos nacionais e estrangeiros? E sobre casas, apartamentos e fábricas que adquiriram aqui ou lá adiante?

Mas tem mais coisa contra a tributação: tem gente que acha que um dos direitos fundamentais da pessoa é seu patrimônio, seja ele herdado, seja adquirido via troca voluntária. Costumo dizer orgulhar-me da propriedade privada de meu corpo e de minha escova de dentes. Mas não vejo com a mesma ênfase, como dogma, o fato de que minha receita possa eximir-se de pagar imposto de renda, ou que meu patrimônio, na hora das doações ou herança, deva ficar isento de um óbulo que seria revertido em benefício de políticos corruptos ou, especialmente da turma dos menos aquinhoados.

Admito que haja até partidos políticos defendendo a propriedade absoluta, inclusive sobre ativos afanados pela geração anterior e que fazem parte do patrimônio tradicional da família tradicional. E acho uma inominável sandice que os menos aquinhoados não votem no partido redistribucionista. Agora achei: a sociedade igualitária conflitará vez que outra com o ideal absoluto da propriedade privada sobre a renda ou o patrimônio. E como obter maioria parlamentar? Education, education, education. Como levar a negadinha a "descobrir seus objetivos na vida e lutar por eles" ou ainda "apropriar-se do patrimônio cultural da humanidade" sem educação, sem saber ler, sem saber escrever, sem capacidade de apropriar-se de um vocabulário que lhe dê tal domínio de conceitos e habilidade para jogar com eles? Como encerrar esta postagem?

Inserindo outro assunto em 1st/jan/2019: o crédito, o crédito para os menos aquinhoados, a fim de incentivá-los a desenvolver sua capacidade empresarial. Imagino cursos oferecidos pelo Sebrae sobre planos de negócios, português (cartas comerciais...) e matemática (a financeira e razões e proporções, etc.). Nesses cursos, o aluno receberia uma bolsa que seria eterna para dar-lhe uma espécie de seguro contra os empreendimentos mal-sucedidos.

DdAB
Imagem daqui. Disse um carinha de meu conhecimento que "no capitalismo, tudo vira mercadoria". Esta linda reprodução da sentença famosa de Nelson Mandella foi apropriada por aquele grupo Laureate que prevê o futuro dizendo "aqui para sempre" naquela bolinha do canto inferior esquerdo. O que não sei é se a mercadoria está aqui para sempre ou se é a educação ou ainda a Laureate.

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