29 maio, 2014

Ulysses: Joyce é o inventor dos dois pontos


Querido diário:

Uma das coisas que mais me chateia por não ser eterno é que eu gostaria de estudar todos os documentos já escritos pela humanidade, de sorte a saber quem inventou este negócio de dois pontos. Por exemplo, na frase "Sobre dois pontos, tenho dois pontos: o primeiro such and such e o segundo... E aí já entram três pontos. Nossa imagem de hoje (fonte óbvia) alegoriza dois pontos. E podia alegorizar mais, se eu buscasse com mais afinco. Alegorizo com Grande Sertão: Veredas. E se não fossem veredas, qual seria o detalhamento? Acho que Guimarães Rosa marcou mesmo época, pois até eu andei metendo dois pontos em dezenas de títulos de artigos científicos e postagens mundanas. Como é o caso destas milhares em que comento, do jeito que melhor posso, o Ulysses (que, no livro da Bernardina ainda se escreve sem o 'y', que fora banido e readmitido à língua portuguesa).

E que diz Joyce sobre o assunto, na tradução de Bernardina da Silveira Pinheiro, página 751?

Que afinidades especiais lhe pareceram existir entre a lua e a mulher? Sua antiguidade em preceder e sobreviver a sucessivas gerações telúricas: sua predominância noturna: sua dependência satélica: seu reflexo luminar: sua constância sob todas as suas fases, erguendo-se e pondo-se em suas horas indicadas, ficando cheia e sumindo: a invencibilidade forçada de seu aspecto: sua resposta indeterminada à interrogação inafirmativa: sua força sobre as águas efluentes e refluentes: seu poder de enamorar, mortificar, investir com beleza, tornar insano, incitar e auxiliar a delinquência: a inescrutabilidade tranquila de seu rosto: a terribilidade de sua isolada dominante implacável resplendente propinquidade: seus presságios de tempestade e de calmaria: a estimulação de sua luz, seu movimento e sua presença: a advertência de suas crateras, de seus mares áridos, de seu silêncio: seu esplendor, quando visível: sua atração, quando invisível.

Contei 31 pontos: 30 duplos e um ponto final. Quantos "dois pontos"? (31 - 1)/2 = 15. Ou seja, na mesma sentença, 15 vezes Joyce usou o recurso de dar uma explicação com dois pontos. Nunca passei de um par, em meus escritos, salvo por engano. E isto me leva a arrecadar mais evidência no sentido de fortalecer a hipótese de que Ulysses não é um romance, mas o borrador de dez.

DdAB
P.S.: fora o seguinte:
GUIMARÃES ROSA, João (2001) Manuelzão e Migulim. 11a. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
Em seu iniciozinho, na página 27 desta edição,  diz-se:

De uma, nunca pôde se esquecer: alguém, que já estivera no Mutúm, tinha dito: -"É um lugar bonito, entre morro e morro, com muita pedreira e muito mato, distante de qualquer parte; e lá chove sempre..."

Então os dois pontos verticais -ou melhor, duas duplas de dois- apareceram também no velho Guima provavelmente no original do 'Corpo de Baile", lá em plenos meados dos anos 1950s, desde quando a escrita brasileira já foi escrachada por duas mudanças ortográficas. Pode? Só bebendo, claro.

DdAB
P.S.: aquilo de dupla de dois é bastante controverso. Eu mesmo faço uma dupla unitária comigo mesmo.

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