04 março, 2014

Ulysses: a navalha sobre o espelho

Querido diário:

O original de James Joyce deixa-se ler como:

Stately, plump Buck Mulligan came from the stairhead, bearing a bowl of lather on which a mirror and a razor lay crossed.

Eu me houve por bem traduzir como (aqui):

Imponente, o gordacho Buck Mulligan pintou [apareceu] no alto [balaústre] da escada com [segurando] uma tigela de barba cheia de espuma, mas não [tão cheia] a ponto de esconder o  aparelho de gilete cruzado sobre um espelhinho.

Há três evidências sobre a qualidade de minha tradução de razor como aparelho de gilete:

.a. a primeira encontra-se no disco "O Povo Canta" da UNE do final dos anos 1950, início dos 1960. Isto significa os anos 1950, no Brasil, os quais, com os correspondentes 50 anos de atraso da civilização brasileira com relação ao ROW (resto do mundo). Fala-se em João da Silva, cidadão sem compromisso, que faz a barba com gilete. Claro que é com um aparelho no qual se encaixa uma lâmina de barbear da marca Gillette.

.b. o lado antissocial da tradução de navalha é a conexão financeira: o meu cartão de crédito é uma navalha, na visão da realidade nacional tida por Cazuza,

.c. por fim, tem aquele samba que fala que "larguei de banda, peguei na navalha e disse: 'pula, moleque, abusado', deixa de alegria prô meu lado."

Isto prova de modo inexorável que Buck Mulligan portava mesmo um aparelho de gilete, pois deixara a navalha há muito tempo, dada a relativa praticidade do aparelho mais moderno.

Agora temos a questão do "lay crossed". A maioria dos tradutores fala em jazerem cruzados o espelho e a navalha. Eu disse que é impossível cruzá-los: o que se pode é colocar enviesada a navalha repousando sobre o espelho. Com efeito, disse meu querido amigo, o prof. Jesiel de Marco Gomes, que uma navalha pode cruzar-se sobre o espelho, mas espelhos planos não têm capacidade de cruzar-se sobre nada.

Então temos o Webster (p.1029):

LAY:
O verbo 'lay' tem milhares de acepções, a mais atraente dizendo que "to place or put so as to be in a resting or recumbent position [...] as to lay the pencil on the table." Mas é do substantivo que tiramos a maior prova da validade de minha interpretação: "the way or position in which something is situated or arranged." Não podemos entusiasmar-nos com isto, na verdade. Segue a questão: a navalha e o espelho estavam cruzados ou este é que se cruzava sobre ela?

CROSS:
Então a encrenca é com 'cross'. Vamos ver o Webster, agora na p.434. Tem um 'cross and pile', que vem a ser, diz o dicionário, o velho jogo inglês do cara ou coroa. E agora, coisa melhor: 'to extend or reach across; as , the bridge crosses a river.'. Ou seja, a navalha (a ponte) cruza o espelho (o rio). Não parece óbvio? E mais: 'to cross one's fingers': fingers no plural, ou seja, podemos pensar em cruzar os dedos, mas nunca um objeto basicamente tridimensional com outro essencialmente bidimensional. A menos que não fosse bidimensional, a menos que fosse um espelho convexo, com um furo sobre o qual passaria a navalha.

Tem um 'to lie across; intersect', é verdade. Mas, nesta linha, fala-se em 'crossbow' como o arco que pode ser "cruzado" por uma flexa. Mas, claro, arco não é espelho, que não se deixa cruzar com navalhas. Também temos o 'cross piece como sendo 'a piece of anything placed crosswise on something else.' Parece que tudo está resolvido: a piece of anything - a navalha e cruzando-se sobre este something else, nomeadamente, o espelho.

Parece que tudo se resolve: a tradução que fiz realmente é a que captura o verdadeiro espírito daquilo que realmente Joyce queria dizer. Ele queria dizer que o espelho repousava sobre a navalha que estava mergulhada na espuma da tigela. Pode ocorrer de um espelho cruzar-se com um assentador

Se não fosse isto, é certo que o monólogo de Molly Bloom não terminaria do jeito como o faz. Mas estudar estas novas evidências em favor de minha hipótese levar-me-ia muito além de minha especialidade, nomeadamente, a primeira -e apenas ela- sentença.

DdAB
A imagem lá de cima veio pelo Google com isto aqui, e depois deu enguiço. E a que segue veio daqui.
P.S. aqui tem muita imagem do Google com este lay crossed: nenhuma tem espelho cruzando-se com navalha.
P.S.S.: aqui está uma irretorquível evidência de que navalha (esquadro, caneta) não pode cruzar espelhos (chapa de madeira):

P.S.S.S.: inseri pequenos consertos às 12h35min de 4/mar/2014.

Nenhum comentário: