16 junho, 2013

A Ferro e Fogo: as mobilizações de cores vermelhas

Querido diário:
(postagem longa)

A bola da vez são as mobilizações iniciadas pela internet e potencializada pelos aumentos dos bilhetes de viagens urbanas de ônibus. Parece que estamos falando de várias capitais do Brasil. E parece que há gente descontente a ponto de sair de casa e encarar os riscos de participar de uma mobilização. E parece que há participantes organizados (PSTU, PSOL, que mais sei eu?).

O mundo é estranho: durante os tempos da ditadura de Castelo Branco e outros homens brancos, Sérgio Cabral era da "patota" do -como eles mesmos diziam- hebdomadário Pasquim. Ele faz parte desse arranjo escalafobético estranho e brasileiro: para melhorar a estrutura urbana de várias cidades brasileiras, precisávamos promover a copa do mundo de futebol. Sem copa do mundo, não haveria vontade nacional? Sem copa do mundo, não haveria propinas. Sem propinas, não haveria política do estilo contemporâneo brasileiro.

Sem voto facultativo e distrital e sem parlamentarismo, não haverá salvação para o Brasil contemporâneo. A choldra (em breve falarei mais do livro de Vianna Moog sobre Eça de Queiroz) escolhe maus políticos por não ter educação por ter maus políticos que sabem que eleitores educados tomariam decisões muito mais lisas do que elegendo ladrões. Ladrões, políticos, choldra, eleitores: estas são as variáveis básicas das mobilizações contemporâneas.

Primeiro: não sei se estamos falando de um evento autêntico, autenticamente importante, merecendo a generalização que farei em seguida (just in case...). Ou se estamos frente a uma dessas invenções da imprensa que leva uns a repercutirem a notícia de outros e daqui a pouco todo mundo fala de um evento que torna-se importante na imprensa. Mas que não se distingue em amplitude e profundidade de milhares de outros que ocorrem cotidianamente no Brasil.

Segundo: se é mesmo que estamos frente a um momento de desencanto generalizado com as condições presentes da política brasileira (ladroagem, salários milionários, escárnio judiciário), minha parca informação e pobre capacidade de recuperação levam-me a pensar que a insatisfação no Brasil nunca chegou ao nível em que estava, digamos, durante o governo Collor. O povo estava mesmo cansado de ladrões e da inflação.

Terceiro: ladroagem parece que é um axioma, ou seja, evidente por si mesma. Basta olhar a dupla palhaçada de haver lei mandando publicar os salários dos funcionários públicos e também de vermos cifras astronômicas! Descontados os spectacular awards lá do velho Joseph Alois Schumpeter, o Planeta 23 não concebe sociedade decente que vive com um índice de Gini de mais de 0,3 e com um leque salarial de mais de dez vezes.

Quarto: inflação e baixo crescimento. A inflação parece revigorar-se, talvez tangida principalmente precisamente pelo problema da falta de crescimento robusto. Este, por seu turno, parece associado à incapacidade da economia de aumentar a eficiência com que usa seus recursos, ou seja, aumentos de produtividade. Não cresce a produtividade: poucos choques significativamente positivos do lado da oferta. Cresce a inflação: torna-se ainda mais difícil calcular rentabilidades e, como tal, mobilizar um projeto virtuoso de crescimento econômico dinâmico e até redução do número de horas trabalhadas na economia. Como tal, as regras distributivas é que precisam acomodar-se para dividir o excedente cada vez maior por meio de critérios cada vez mais inclusivos. Até chegarmos àquela situação falada por Martin Bronfenbrenner e os maximalistas: ninguém trabalhará mais de dois ou três anos durante todo seu curso de vida.

Quinto: a capa de Zero Hora de ontem, em segundo plano, fala das mobilizações:

Protestos
O risco do aumento da violência nas ruas
Ampliação de alvos e danos na Capital abre discussão sobre rumos das mobilizações.

-> Ação da PM de São Paulo é investigada

Cláudia Laitano
Quebra-quebra atrasa debate

Rosane de Oliveira
Causa certa com método errado

Páginas 2, 4, 5, 8 e 12.

Então vejamos.

Página 2: Cláudia Laitano (notei apenas hoje que ela oferece, além do e-mail (claudia.laitano@zerohora.com.br), um endereço do tuíter (@ladilait). Este, vindo eu da chamada feita pela capa com aquela pulga atrás da orelha, soou-me como um Lady Leite, sei lá. Une chose de la noblesse qui s'oblige a condenar qualquer desvio mais sério para o vermelho. Se é que é desvio sério, repito, se é que não estamos apenas vendo uma orquestração, digamos, para que o governo brasileiro seja entregue a outros ladrões, no caso, ladrões defensores de outras contas bancárias, comungando com os atuais o mesmo apreço pelo patrimonialismo e salários escalafobéticos.

Então tem aquela de que o quebra-quebra atrasa o debate, como -talvez- no caso da Revolução Francesa e da chamada Primavera Árabe. E os planos da turma da Inconfidência Mineira. E milhares de outras situações modificadas na base da violência que serviram para conduzir a humanidade a mais conquistas institucionais, melhorias institucionais, garantia de mais direitos humanos. E no artigo tem a chamada "A violência é sempre caótica, incontrolável, anticivilizatória" que deixou-me a rir, rir, rir. É mesmo? Qual a fonte? Qual a evidência? Não é, claro, o caos que vemos nos filmes do Poderoso Chefão: uma organização de dar inveja à CIA e ao FBI, para não falar no ódio que muitos brasileiros nutrem pelos governantes de R$ 30.000.

Página 4: duas páginas de reportagem não assinada. Encabeça-a a reprodução de declarações de seis nomes e sobrenomes (Rejane Azevedo, Adair Dolzan, Carlos Tadeu Rosa, Bibiana B.S., José Augusto Rocha e Rafael Schwartz) que tem um admirável ponto em comum: condenar pelo menos um aspecto das manifestações. Na reportagem, claro que há condenações às atitudes escabeladas da polícia  e, como tal, do aparato repressivo organizado pelos atuais governantes do Brasil. Dizer -não que o jornal tenha dito- que a polícia de São Paulo é mais violenta porque trata-se de um governo do PSDB é tão baixo nível como dizer que quem está afundando o Brasil é o PT. São 30 anos, 40 anos, talvez 513, de descalabros escabelados. Tem gente que até abre algum espaço para a violência.

De minha parte, entendo um movimento deste tipo como povoado por pessoas das mais diferentes formações culturais e psicológicas. Como tal, haverá, digamos, um espectro estendendo-se da direita à esquerda. E haverá "direitistas" que só caminham vagarosamente nas manifestações, sem gritar, sem portar cartazes. E "esquerdistas" que gritam, lançam impropérios e tacam fogo na vitrine da loja, no conteiner do lixo e no carro da polícia. A violência do protesto é que ele mostra insatisfação não apenas contra o aumento do preço dos bilhetes de ônibus mas contra todo o status quo brasileiro contemporâneo. Há muita ineficiência especialmente do sistema judiciário (telefones privados dos ocupantes dos presídios, julgamentos comprados em diferentes cortes, essas coisas). Tem milhões de vetores de forças que resultam nas manifestações. Boa parte destes é de esquerda. Se fosse apenas direita, teríamos... Zero Hora. Por puro acaso (página 9), "um dos carros da empresa" foi detonado. Era ódio às multinacionais que produzem veículos no Brasil? Era ódio do grupo jornalístico de direita? Era um militante desempregado?

Página 12 Aqui temos a coluna Página 10, da cronista política Rosane de Oliveira (rosane.oliveira@zerohora.com.br e @rosaneoliveira). O título é: "Protestos sim, violência não". Diz Oliveira que "Nelci Muttes disse uma frase definitiva para a repórter Geórgia Santos, da Rádio Gaúcha, ontem à tarde: -As pessoas que se escondem atrás de uma máscara, que cobrem o rosto, não são verdeiros homens, são uns covardes." E diz mais a Página 10: "Vale para os homens e vale para as meninas que tmabém usam toucas ninja nos protestos e depredam patrimônio público e privado: são covardes, escondidos atrás de uma máscara." O Planeta 23, estupefato, indaga: "Máscara só vale para o carnaval? Ou também para a política? Filmou, reprimiu, então mascarou, né, meu chapa?".

Página 13. De brinde, já que não está anunciado na capa, a página 13 tem um "Debate: Protestos de Rua", com dois artigos assinados. Esquerda e direita. A esquerda, por meio do doutor em educação pela UFRGS, sr. Jorge Barcellos, diz em seu parágrafo conclusivo

É claro que não queremos a violência, mas o problema justamente é saber aquilo que queremos. O espírito destes movimentos é de revolta e não de revolução, são movimentos de fúria autêntica sem um programa de mudança sociopolítica. A maioria de seus participantes rejeita a violência, mas há ali em seu interior aqueles que seguem praticando-a, produto da descrença na classe política à direita e à esquerda. Movimentos sem programa se tornam histéricos e o que vemos no dia seguinte é a repetição do dia anterior, o que leva a um estado de emergência permanente e o risco da suspensão da democracia política. Cmo dizia Gandhi, os manifestasntes só foram violentos porque 'querem dar um basta ao modo como as coisas funcionam' (Zizek), mas oq ue significa sua violência quando comparada à exercida pelo Estado que afirma existir liberdade mas não tolera a 'liberdade de rebelião'? [Verbatim]

Em geral, gosto da abordagem, que me parece mais à esquerda, ela mesma. Claro que a violência não é boa e claro que, na condição de caso extremo, ela se justifica por si só: havia algo incomodando tanto que não foi possível chegar ao diálogo (lembrar Anatol Rapoport e o próprio título do livro: lutas, jogos e debates). Não se trata de um jogo nem de um debate. Não dava mais para dialogar com a classe política, os representantes eleitos fraudaram de tal maneira as expectativas daquele grupo e de milhares de outros que não foram (desalentados e outros) que também há milhares de apoiadores. Sou pela paz! Mas não nego que haja gente que ajuda o planeta a avançar precisamente por ocupar o caminho da violência. Não gosto. Sou pela paz. Mas apoio, dou apoio e gostaria de participar, gostaria de deixar claro aos governantes que esses 20 ou 30 anos de marasmo institucional deixaram o Brasil precisamente na mesma condição de início: um país subdesenvolvido.

E aí tem a voz da direita, o advogado Sebastião Ventura Pereira da Paixão Jr. diz "Destaco um detalhe: muitos manifestantes estão encapuzados. O que isto significa? Significa que precisam esconder seus rostos porque sabem que estão fazendo algo errado, ilícito ou reprovável. E é sabido e ressabido que a justa reivindicação não precisa de disfarces ou anonimatos." É? Nem na Revolução Francesa? E mais: "Pergunto por oportuno: se uma manifestação pública interromper o trânsito, impedindo que uma ambulância com um paciente grave chegue ao hospital e ocasione o óbito do doente, serão os manifestantes responsabilizados pela morte?" E eu pergunto: e se a grávida não tiver o dinheirinho para pagar o bilhete de transporte ou o ingresso na maternidade? Que diabos de critério é este do trânsito? Não seria também errado construir nas diagonais das ruas? No lugar geométrico de todos os pontos que convergem ao hospital e derrubar as casas, a fim de acelerar e deslocamento das ambulâncias? Cada uma! Ainda assim, há algo de uma dúvida razoável na argumentação: "A questão é que talvez os veículos tradicionais de participação política (partidos políticos) estejam superados pelas novas formas de direta manifestação democrática (internet e redes sociais)."

Obviamente, o povo revoltado assusta até mais que o revolucionário, para usar a categorização do sr. Barcellos. E a questão é como converter esse descontentamento em força realmente capaz de transformar as instituições sem atropelos. A questão é como convencer os poderosos de que eles estão colocando em risco muitas vidas, muito patrimônio humano, social e econômico. Mas qual seria o incentivo para um deputado, um governante qualquer, passar a trilhar o sendeiro do bem? Qual a probabilidade de que gente como a petista Dilma ou o socialista Campos possam liderar uma importante facção do espectro político, de sorte a granjearem apoio parlamentar e civil que lhes permita conduzir as reformas democráticas que conduzam ao socialismo, ainda sem defini-lo. Mas bem sabemos quais são as reformas democráticas, por exemplo:
.a. retornar a idade máxima de aposentadoria dos atuais 75 anos para os antigos 70 anos (e até 60, por que não?; a renda não subiu 3,5% a.a. desde 1968?)
.b. gastar em educação seriamente, sem atropelos ou arremedos
.c. ler atentamente as postagens deste blog e tirar delas um programa de trabalho decente (por exemplo, o voto distrital facultativo).

DdAB
Imagem: daqui.
Claro que não estamos falando de assaltos a bancos ou rebeliões nas prisões controladas por traficantes de drogas. Mas de desobediência civil. Veja o que diz nosso Bípede Pensante (aqui).
P.S.: acrescentei isto às 18h23min de 24/jun/2013: parece que as mobilizações vermelhas têm boas agendas, inclusive aquelas duas que postei aqui.

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