15 março, 2012

Carta Velha x Brasil Novo (com adendo post post)

querido diário:
muito antes do dia 14/mar/2012, ou seja, de ontem, li a "Carta Capital". mas a azáfama impediu-me de postar há mais tempo o que segue. li-a durante o final de semana, quando fervilhava em minha cabeça o seminário que se postava no futuro imediato e que veio a ocorrer na segunda-feira tresontonte. cito, para referência e comento, quando é o caso.

primeiro
na p.20 começa um artigo de Antonio Luiz M.C. Costa ("Diques para tsunamis"). pouco antes de chegar ao final, já na p.22, ele tem uma frase extraordinária de combate ao determinismo:

Nâo está escrito nas estrelas que o Brasil precisa girar em torno de algum outro [i.e, China, EUA e Europa] polo. A oportunidade que poderia e deveria aproveitar é a de ser um dos centros de um novo mundo que pode e deve ser policêntrico. Issso significa não apenas ter indústria e infraestrutura, mas também criatividade científica e tecnológica, ter capacidade de realizar pesquisas e aplicá-las na prática. E isso repousa, por sua vez, naquilo que é ao mesmo tempo o meio e a finalidade de qualquer desenvolvimento vedadeiro: uma sociedade de gente com saúde, educação, igualdade e democracia.

por um lado, não sou muito a favor do ufanismo. não quero dizer que o Brasil não possa converter-se numa verdadeira potência mundial. mas o que espero é que ele não imite a Coreia do Norte, que é respeitável precisamente por integrar o clube da baixaria. parece-me, ao contrário, que as verdadeiras potências mundiais lançam-se ao mundo apenas após terem resolvido os problemas internos que Costa refere na sentença final. em outras palavras, internamente, precisamos (já que ele falou em "escrito nas estrelas", o que evocou-me Tetê Espíndola, cito Gilberto Gil) de "festa, trabalho e pão". e, externamente, venho eu com o segundo lado, precisamos chegar mais perto do nível de produtividade do trabalhador americano, ou seja, vencer o presente hiato de pouco menos de 10 vezes. tamanho por tamanho, não podemos esquecer que a Nigéria será o terceiro país do mundo em população no ano 2050. mas, lá, como aqui, sem produtividade não há felicidade...

segundo
a p.23, estampa o artigo semanal de Antonio Delfim Netto. a certa altura, ele diz:

O Brasil precisa pensar em dar empregos de boa qualidade a 150 milhões de brasileiros em 2030 e não vai poder fazer isso com o atual sistema de exportação e sem expandir o setor de serviços.

não fossem as provas documentais de que este tipo de ideia estava escrito -nada de estrelas- no paper que substanciou o seminário de Brasília, eu diria que poderiam dizer que o que lá falei estava baseado no que disse nosso ex-ministro da fazenda do governo Médici. naturalmente, o atual sistema de exportação, baseado em produtos agropecuários e da extrativa mineral (ferro e petróleo) não é eterno, como também se refere no paper, a partir da leitura de um artigo de Antonio Barros de Castro. temos, talvez, 20 anos para quebrar o galho. talvez possamos pensar que haverá ainda mais demanda para estes produtos, se as reservas e o solo aguentarem. por exemplo, rechear a África de alimentos não será tarefa para apenas 20 anos.

agora: há muitos anos ouvi cobranças de estrangeiros sobre o modo como as gerações pretéritas administraram o negócio do café, ou melhor, o negócio de exportação de café. o Brasil não é nem um bom distribuidor do produto in natura no resto do mundo, nem foi capaz de inventar o negócio das cafeterias à la Starbucks. isto não me surpreende, dado que uma população detentora de baixíssimos níveis de capital físico, social e humano não poderia dedicar-se a planejar e inventar atividades mais lucrativas.

quero dizer, com Delfim Netto: expandir o setor serviços. este responde por 65% do PIB e o crescimento exógeno de sua demanda é absolutamente dominante na condução da criação de valor adicionado. não falei antes na frase "ter indústria e infraestrutura, mas também criatividade científica e tecnológica", pois apoio, como se vê no parágrafo anterior, a segunda parte. já a primeira... na postagem em que relatei coisas do já proverbial seminário de Brasília, usei a palavra "fisiocracia", pois entendo que há uma fetichização da produção industrial apenas comparável ao endeusamento que les économistes fizeram da agropecuária (e talvez nem da pecuária...).

quando se promove a indústria, como falei na postagem de ontem, o que vejo mesmo é a criação de uma distorção de tal magnitude na formação dos preços relativos que -obviamente- causará distorção assemelhada na distribuição da renda. qual é mesmo a relevância de termos uma indústria aeronáutica no Brasil? para transportar pessoas e aspergir defensivos agrícolas sobre nossas auriverdes lavouras? mas não daria para comprar os aviões de algum lugar de menores preços? [quero dizer: não sou contra a indústria da aviação capitaneada (sem trocadilho com relação aos fundadores da Embraer, aliás, hoje em dia, uma empresa estrangeira) por empresários privados; o que não me agrada é tirar dinheiro das merendas escolares e jogar para os parentes dos políticos administrarem].

aliás, meu ponto sobre a produção de aviões agrícolas e defensivos e adubos químicos é assemelhada: as vantagens compartivas da produção primária brasileira são de tal magnitude que estas indústrias a montante do eixo central do complexo primário-agro-industrial seriam induzidas mesmo sem a "ajudinha" governamental, cujo custo de oportunidade é mesmo a merenda escolar. ou seja, minha equação do desenvolvimento é simples e delfiniana: gasta em serviços educacionais e terás aviões, gasta em saúde e terás uma indústria farmacêutica. tudo se os preços relativos locais e internacionais forem compatíveis.

agora, aliás: descontadas as questões do protecionismo (que deve ser removido com tratados e diplomacia e não com barreiras alfandegárias), não vejo qualquer vantagem na produção nacional de nada, exceto de serviços de educação, saúde, segurança, justiça, saneamento, aquela velha listinha de sempre. afinal, não estamos naquela parada lennonista do "imagine there's no countries"?

e ainda tem mais: falei ontem que, quando incentivamos as indústrias do Oiapoque, estamos criando certo embaraço para as instituições (famílias, governo, empresas investidoras locais e empresas exportadoras locais) do Chuí. ontem, não falei "e vice-versa". é óbvio que sairia mais em conta alguém do Oiapoque comprar crepes, digamos, da Guiana Francesa do que do afamado arroio sulino.

terceiro:
vou citar um longo trecho das p.28-29, que abrigam o artigo "A festa tem hora para acabar", de Luiz Gonzaga Belluzzo:

Na ausência de medidas potentes de defesa comercial e de intervenções corajosas no mercado de câmbio, o ambiente negativo para a indústria brasileira vai piorar. Já observei em utra ocasião que, na China, o aumento da participação dasexportações demanufaturas no comércio global foi acompanhado por um aumento correspondente da participação chinesa no valor agregado manufatureiro. Isso tem uma implicação importante: o valor adicionado às exportações pelo trabalho dos chineses elevou-se com a maior integração da economia ao comércio internacional e, ao mesmo tempo, induziu-o à ampliação das redes de formação e circulação da renda interna.

Os habitantes do Império do Meio leram cuidadosamente Adam Smith e seu crítico maior: entenderam o que sgnifica a divisão do trablaho e a formação de valor [aqui e adiante, itálico no original] induzidos pela industrialização. A partir dessa compreensão nada trivial promoveram políticas intencionais de expansão e diferenciação das forças produtivas e, portanto, das cadeias de criação de valor. Nesse caso, pode-se concluir que houve um "adensamento" das cadeias manufatureiras domésticas que permitiram a apropriação do aumento das exportações pelo circuito doméstico de geração de renda e de emprego.

Na América Latina, inclusive no México, a história foi outra. O México, diferentemente do Brasil e da Argentina, aumentou bastante sua participação relativa nas exportações mundiais. Mas caiu a sua parte na formação do valor agregado manufatureiro global, exprimindo a desarticulação das cadeias produtivas depois da assinatura do Acordo de Livre Comércio da América do Norte (Nafta).

citação mais longa das três, e comentários um tanto espichados. sabemos que o valor adicionado tem três óticas de cálculo: produto, renda e despesa. o produto de um setor não tem compromisso legal de ser igual a sua despesa! não sei se, quando fala em valor agregado manufatureiro, ele quer dizer "produto". na linha de minhas formulações do modelo de insumo-produto, podemos associar a cada grupo da demanda final (consumo das famílias, consumo do governo, investimento e exportação) um conjunto de variáveis, como a original, a oferta total que lhe corresponde, o PIB a ela associado, o emprego, os impostos indiretos, e assim por diante. neste caso, podemos colocar lado-a-lado a exportação (valor adicionado mensurado pela ótica da despesa) com o PIB (valor adicionado mensurado pela ótica do produto). como sabemos, a renda não integra a matriz de insumo-produto.

ok. ao compararmos a exportação com o PIB associado a ela (ver o post scriptum), poderemos, talvez, tirar a dúvida que emergiu em meu espírito ao ler o primeiro parágrafo dos que selecionei do artigo de Belluzzo. é fácil de provar que, corrigido pelas importações, naquele setor em que o PIB é maior do que a demanda final, então as vendas de insumos são maiores do que as compras de insumos. e por que as vendas seriam maiores do que as compras? porque ele seria mais especializado (ou teria mais poder de monopólio na formação do preço) do que a média da economia, ou seja, nele gera-se mais valor do que na média. claro que não posso falar pela China, mas pelo Brasil e por dados das economias europeias que já manipulei não existe esta superioridade generalizada das "manufaturas". o que há é que, mesmo dentro da indústria de transformação, algumas atividades têm o PIB maior do que a despesa e outras, têm-no menor.

então, a sentença que associa aumento da participação das exportações chinesas no mundo com o aumento da participação chinesa no valor agregado manufatureiro é obscura para mim. em especial, no agregado de todos os setores, o PIB é identicamente igual à despesa, pois ambos não são nada mais do que a mesma coisa: duas óticas de cálculo da mesma coisa, o valor adicionado. pior ainda: a sentença "[...] o valor adicionado pelo trabalho dos chineses elevou-se com a maior integração da economia ao comércio internacional" ou é um resumo do que está dito imediatamente acima ou é um truísmo. que estará ele querendo dizer? que exportar é bom? parece óbvio que é. que, quando aumenta o produto, a renda e a despesa aumentam precisamente na mesma medida? parece óbvio que é. o que me parece preocupante é que muita gente pensa que primeiro aumenta o produto e depois é que aumenta a renda e depois é que aumenta a despesa.

o modelo keynesiano diz que primeiro aumenta a despesa e depois aumenta a renda (mas queria dizer o PIB), mas eu digo que o que aumenta é o valor adicionado na forma M*V, ou seja, gera-se o valor de uma unidade de tempo. e que este valor é alocado para produtores, fatores e instituições na forma de, respectivamente, produto, renda e despesa. e aí, juntamente com o valor e as produtividades setoriais relativas, determinam-se os percentuais de distribuição do produto entre setores e também, juntamente com o poder de barganha relativo, entre capitalistas e trabalhadores e também o governo (com os impostos indiretos líquidos de subsídios). também se determina a distribuição do produto dos produtores (trabalhadores e capitalistas) às instituições (digamos, famílias pobres e famílias ricas). também se determina a despesa destas famílias. mas, isto é o mais importante, também se determinam as transferências interinstitucionais, ou seja, uma fração de M*V que não é valor adicionado nem transferências interindustriais.

então o que estou dizendo é que não foi a exportação que gerou o valor adicionado, mas que, dado um volume de valor adicionado às matérias primas em determinado período, é que todos os fatores institucionais relevantes levaram a que se exportasse determinada fração dele e que se a distribuísse entre os diferentes setores produtivos. quero dizer: o valor adicionado não é engendrado na produção (trabalhadores e capitalistas) mas na sociedade (trabalhadores, capitalistas, aposentados, sinecuristas, e por aí vai).

ou seja, quando Belluzzo fala em Smith e Marx e a partir daí é que os chineses "entenderam o que significa a divisão do trabalho e a formação de valor [sic] induzidos pela industrialização, sinto um alívio. é precisamente contra isto que escrevi os dois últimos parágrafos. como andei dizendo, mutatis mutandis: "acho que dei uma péssima resposta a tua pergunta":: é a visão oposta.

aí ele volta ao ponto, restatando agora o exemplo do México. como é que pode um país aumentar a participação nas exportações e reduzir a no PIB? claro que não pode! ergo, as cadeias produtivas mexicanas depois do Nafta podem ter até sido destruídas (o que não discuto), só que isto não se segue da identidade contábil entre as três óticas de cálculo do valor adicionado. o que azarou o México? isto não tenho condições de discutir, mas posso garantir que não foi um problema de definição errônea do valor adicionado pelo segmento exportador.
DdAB

p.s. das 16h54min de 12/abr/2012:
fui alertado para uma citação fora de contexto que fiz do artigo do prof. Antonio Delfim Netto e apresso-me a corrigi-la. a frase que citei acima complementa-se com:

E não vai conseguir sem proteger a sofisticação da estrutura industrial que estamos permitindo ser destruída pela supervalorização cambial. 

em outras palavras, em boa medida, adulterei o que ele disse (e lamento profundamente os mal-entendidos que possam ter pintado nestes dias entre a postagem e esta retificação). não há dúvida de que a primeira parte (que citei acima) é de autoria lá dele, claro. mas eu citei, no sentido de apoiar os mais importantes achados do trabalho quantitativo a que venho-me dedicando desde, pelo menos, o início de setembro do ano findo: o setor serviços é dominante na formação da renda brasileira e mais perto está de produzir uma economia dinâmica e uma sociedade igualitária. não me dei conta de que a omissão da parte em que ele defende medidas de proteção à "sofisticação da estrutura industrial" enviesaria o leitor (felizmente apenas um ou dois...) sobre o pensamento delfiniano. ele recomenda a adoção de política cambial para proteger a indústria.

na verdade, entendo que ele defende a política industrial do governo. mas não é, claro, nesta frase, da qual nem discordo, pois não está falando em política industrial. ao contrário, se algo decorre diretamente do escrito nesta frase é que alguma política de desvalorização cambial faz-se necessária. sem ela, a indústria -como diz a frase dele lá de cima- não poderá prover "empregos de boa qualidade a 150 milhões de brasileiros em 2030". e o que digo -e creio que ele não discordaria- é que esta desvalorização cambial (ver o artigo de Bresser Pereira que transcrevi aqui) vai tornar a "reprimarização" ainda mais estonteante!

segue a postagem original:

imagem: égua velha e potro novo aqui.
p.s.: quarto (apêndice aos três pontos originais) tudo o que falei vale no contexto do modelo de insumo-produto e da matriz de contabilidade social. como sabemos, ambas as matrizes portam tanto relações contábeis quanto comportamentais. com a MIP, sabemos que x = B * f (onde x é o vetor da produção setorial, B é a matriz inversa de Leontief e f é o vetor da demanda final). se não ficarmos com o vetor da demanda final agregado deste jeito, mas o substituirmos pela matriz de suas componentes, teremos X = B * F. cada coluna de X dará a oferta total de uma subeconomia (a das famílias, a do governo e as demais acima identificadas). depois dizemos que P = q x B x F (onde q é a matriz diagonal de produto por unidade de produção), ou seja, dizemos que existe uma matriz de produto das subeconomias correspondendo a esta matriz de demanda final. e pode-se provar que os totais de cada coluna de F são idênticos aos das correspondentes colunas de P. quer ver? olha minha tese de doutorado. quer ver atualizado? pega as matrizes do site do prof. Joaquim Guilhoto e calcula estas equações. onde? aqui:
GUILHOTO, J. J. M. (c.2011) Sistema de Matrizes de Insumo-Produto para o Brasil. 56 setores. Disponível em: http://guilhotojjmg.wordpress.com/banco-de-dados/matrizes-nacionais-2/. Acesso em 28/dez/2011.

p.s.s.: agregado em 30/mar/2012. sobre o artigo de Delfim Netto. logo após a frase que citei acima, ele não deixa dúvida sobre sua simpatia pelo projeto industrializante brasileiro: "E [o Brasil] não vai conseguir [dar empregos...] sem proteger a sofisticação da estrutura industrial que estamos permitindo ser destruída pela supervalorização cambial." meu pensamento a respeito é bipolar. por um lado, penso que o endeusamento do setor industrial (talvez alegadamente formador de capital físico, quando eu queria formação de capital humano e social) é um erro analítico. por outro, penso que o Brasil não pode jogar dilema de prisioneiros e postar-se no quadrante do trouxa. se é dilema de prisioneiros, e a estratégia dominante é proteger, não há como liberalizar. e é dilema de prisioneiros.

p.s.s.s.: por quê erro analítico? primeiro: porque a acumulação de capital não se dá dentro dos setores industriais, mas dentro dos conglomerados empresariais, que atuam em diferentes setores. em segundo lugar, porque o capital físico pode ser importado, ao passo que o capital humano é essencialmente nacional (ainda que ajudado pela imigração). terceiro: apenas o que os neo-schumpeterianos chamam de sistemas nacionais de inovação é que poderão dar ganhos perenes de produtividade a todos os setores, sendo o capital físico apenas um coadjuvante. quarto: os alegados linkages de um parque industrial integrado falam de valor da produção e não de valor adicionado.

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