14 novembro, 2009

Prolatando Chutes

Querido Blog:O blog do amigo do amigo do amigo etc. levou-me, mais uma vez, ao blog Chutando a Lata e a postagem comentando uma entrevista de Samuel Pessoa, um economista da FGV. Eu comecei um comentário que mostrou-se, logo aos primeiros toques, enorme. Mudei de idéia e decidi fazer, por aqui, uma postagem longa. Mas meu comentário lá remeterá para cá. Entre Seca e Meca, diriam Sêneca e Mégalo, algo assim. Segue-se um decálogo de 11 itens, pois o primeiro, fora da contagem posterior, dirige-se à tabela acima, que inventei há poucos instantes.

A moral da história que quero instilar com os dados de minha tabela é simples: quem mais investe está melhor do que quem menos investe. Se uma -diriam Samuel Bowles e sua turma- social structure of accumulation permite shares do investimento no PIB de 30% como chegou o Japão, 35%, como vemos pela Coréia e os 50% chineses, melhor para os chineses. Meus números não são, você já notou, do Japão, Coréia e China, mas estilizações. Inventei uma história de que os três países dobram o PIB a cada 10 anos, logo, em 30 anos, todos octuplicaram. Mas o investimento se mantém constante como share do PIB. Vemos um blim-blim-blim interessante na evolução da relação capital/produto em 30 períodos, ou seja, vemos promessas de mudanças nas funções de produção das economias que investem mais do que as outras. Minha simulação, com o Excel e 100 anos dá uma supremacia aos chineses: 4,48, 5,22 e 7,46. Antes de partir para a galhofa para cima dos chineses, deixa-me dizer que até agora não escrevi a palavra "poupança". De fato, considero-a irrelevante para o tratamento do tema, como tenho argumentado aqui milhares de vezes e elaborarei no decálogo abaixo. Com 60 milhões de membros no Partido Comunista Chinês, não há como negar que o negócio de emissão de carteirinhas de sócio, explorado capitalisticamente, é quase tão maravilhoso quanto o de vender ao governo os recibinhos de que o cidadão brasileiro está em dia com suas "obrigações eleitorais". Traço biográfico: eu não queria ser chinês, nem ser obrigado a votar no Brasil.

primeiro (verdadeiro). entendo que os substantivos "poupança" e "investimento", escapando da linguagem corrente consignada no Sr. Aurelião de R$ 3,00, assumiram significado técnico específico e restritíssimo. creio que todos nós -economistas- os incorporamos, no sentido de que, pelo menos, eles vêm sendo empregados na obra de John Maynard Keynes, James Meade e Richard Stone. e é neste contexto que pretendo alongar-me, se tiver companhia. a certa altura, serei incapaz de diferenciar o que é meu e o que é dos autores que mencionarei. tampouco acalentarei a esperança de esconder minha modéstia aqui e o salto alto acolá.

segundo. sem Keynes, Wassili Leontief, e Meade, talvez Stone não recebesse o epíteto que -talvez solitariamente- lhe atribuo de maior economista de todos os tempos. sem eles, Stone não teria inventado a matriz de contabilidade social - MaCS que inspira a visão que começo a expor assim que citar outros inspiradores de minha visão sobre o tema: os clássicos, Marx, Walras e os estruturalistas latino-americanos (Anibal Pinto e Madame Tavares).

terceiro. o bem-estar material de uma sociedade mede-se com o valor da produção (V) cuja criação é descrita por meio de uma função de produção tal como
V = f(L),
em que L é um vetor encapsulando variáveis como trabalho, capital físico, capital humano, capital social, insumos energéticos, insumos outros etc.. quando queremos medir o grau de eficiência com que os recursos são utilizados pela sociedade, devemos abandonar V, construindo uma variável que apenas existe no mundo das idéias: o valor adicionado v. apenas na granja, v tem existência física: produção medida em sacos de cereal frutificando em sacos de cereal (e o cereal tem que ser apenas arroz, ou trigo, ou milho, sei lá, nunca ambos os três...). ou seja, agregar um saco de milho com um porco é mágica alheia às três dimensões do planeta em que ora vejo-me encarnado. acho que Meade e Stone (mas já vi atribuição a Ragnar Fritsch) inventaram (no sentido que -em gauchês- damos a "campear") de inspirar-se nos mercantilistas, fisiocratas e clássicos para proclamar que o valor adicionado tem três óticas de cálculo. se a distância que nos separa tem duas óticas de cálculo (a tua e a minha), não devemos surpreendermos que haja coisas que terão duas ou mais óticas de cálculo. Polifemo é que tinha lá apenas uma... chega de piadinhas: o valor adicionado pode ser medido pela ótica do produto, pela ótica da renda e pela ótica da despesa. a FGV sabe isto desde sempre, mas juro que sabe no "manual das contas nacionais" (livro branco) lá de 1972, ou algo parecido.

quarto. o investimento é uma fração do valor adicionado (conceito artificial) apenas no caso em que decidirmos medi-lo pela ótica da despesa, o que o faz duplamente artificial, não é isto? ou seja, estamos falando a "absorção" (termo técnico que estou tentando inventar) da fração do valor adicionado que chamamos de investimento. se falarmos na ótica produto, somos proibidos -tomara- por Stone de falar em investimento, pois "produto" avalia a "geração" do valor adicionado e não sua "absorção". o produto mede a distribuição primária do valor adicionado, ou seja, a distribuição entre salários, lucros e impostos indiretos líquidos de subsídios. por fim, a ótica da renda -"apropriação", lá volto eu- mostra a distribuição secundária do valor adicionado, ou seja, a forma como esta modelagem entende que os [locatários dos] fatores primários de produção que alugaram seus serviços (seus, deles, lá, os serviços dos fatores) prestam contas dos ganhos a seus proprietários, nomeadamente, as instituições famílias (consumo), governo (gasto e tributos), firmas nacionais (compradoras de bens de capital dos produtores) e firmas estrangeiras (compradoras das exportações nacionais líquidas). deixando de lado algum probleminha de articulação da linha básica de meu argumento, não detalhando em excesso a natureza da equação keynesiana (y = c+g+i+x-m), somos forçados a concluir que em nenhuma das três óticas de cálculo do valor adicionado pode-se escrever a expressão "poupança".

quinto. talvez eu já esteja argumentando solitariamente há um ou dois parágrafos. em qualquer caso, dos quatro anteriores decorre minha primeira conclusão-comentário. poupança, que nada tem a ver com o valor adicionado, nada tem a ver com o investimento, que nada mais é do que uma componente de uma das três óticas de seu cálculo sinalizadas pela MaCS.

sexto. ainda que Keynes tenha discutido em incontáveis oportunidades a "esmola" (dole), esta não foi modelada em absoluto na sua "contabilidade social". isto o levou a considerar a identidade ex post entre poupança e invsetimento (o que é verdade mesmo na moldura da MaCS, como vou aprofundar). neste parágrafo, quero registrar que esta identidade levou a que muitos de nós pensássemos que, como Y = C+S e Y = C+I, então S = I. não está errado, repito, mas enganaram-nos a pensar que S faz parte da renda!

sétimo. a poupança é, na verdade, um conta de saldo entre receitas (e eu não disse "renda") e despesas (e eu não disse "despesa") das instituições. ela não tem existência "real", no sentido de que apenas existe nas economias monetárias (para podermos somar milho e porcos). a oferta total e a demanda total do modelo keynesiano são até mais familiares ao economista do insumo-produto do que ao macroeconomista. na linguagem de Stone (mas não na de Leontief), trata-se da receita dos produtores, ao buscarmos -como estou fazendo- entender a relação entre poupança e investimento, devemos abandonar os blocos de transações intermediadas pelos produtores (estes vendem "despesa" às instituições e compram "produto" aos [...] fatores). devemos deslocar-nos a outra visão dos blocos de transações mercantis. desta vez, interessa-nos esmiuçar as relações que as instituições mantêm como os [...] fatores. abandonando os conceitos de oferta total e demanda total, devemos fixar-nos agora em sua "receita total" e "despesa total". uma matriz de contabilidade social que registra lançamentos brutos nas contas das famílias, governo e firmas (domésticas e internacionais) cobre uma ligeira ambiguidade que pode resultar da leitura strita do argumento que venho desenvolvendo há uns três ou quatro parágrafos.

oitavo. a receita total das famílias é o montante de dinheiro (quantidade monetária, na genial sacada de Leontief) que vai ser aplicado em consumo, mais o dinheiro que a elas transfere o governo, mais os donativos que umas famílias (digamos, pobres) recebem de outras (digamos, ricas), menos os donativos que elas (digamos, as pobres) pagam às outras (digamos, as remediadas/um pai varredor de rua que deu um fogão a gás ao filho bancário), um troço assim. no final do período contábil, a diferença entre a receita total e a despesa total de cada instituição específica pode ser diferente de zero, pois as famílias (e o governo e as firmas etc.) podem endividar-se, inclusive, por exemplo, os pobres podem ficar devendo aos ricos (nota biográfica: eu mesmo terminei o exercício contábil da sexta-feira à noite devendo dois chopes a uns amigos com quem entretive uma happy hour).

nono. mutatis mutandis, este arrazoado ajuda a entendermos a natureza do crédito que cai na mão do governo que gasta mais do que arrecada e às instituições domésticas que exportam menos do que importam. neste ponto, podemos entender o fechamento contábil da MaCS que exige que a poupança seja igual ao investimento: a poupança das famílias mais a do governo mais a do setor externo, sendo impossível aritmeticamente o superávit ou déficit simultâneo das três: de alguma fonte haverá de buscar receitas o devedor.

décimo. não disponho de estatísticas recentes, o que me força a falar de 2002 (o que faço em um artigo que a Revista Econômica do Nordeste publicou com um esmero de corar frades de pedra, formatando pela ABNT a MaCS; as pedras da tumba de Stone -dizem- queriam um duelo à la Wyatt Earp com as dos burocratas mortos que se encarregam de publicar artigos econômicos, do Oiapoque ao Chuí, que por estas invernadas também andaram tosquiando-me as MaCS). penso em dar um certo toque empírico a esta postagem longa. naquele ano de 2002, houve superávit no orçamento das famílias ricas e no balanço de pagamentos em transações correntes, por contraste aos déficits do orçamento das famílias pobres e do orçamento governamental. segundo traço biográfico: sou adepto da teoria da grande conspiração, o que me leva a sugerir o seguinte. quem financiou a poupança dos ricos e das firmas estrangeiras foram os pobres e o governo nacional. além das inegáveis verdades contábeis que expressei, as interpretações são obviamente inspiradas por esta teoria (admitidamente, um tanto vira-lata): rico poupa com o dinheiro dos pobres. tudo isto leva-me a pensar que a causação que sustenta que o investimento é baixo no Brasil porque a poupança é baixa é outra manifestação desta mesma teoria da grande conspiração. esta, sabidamente, não é afeita às regras da lógica da dupla entrada, pois sustenta simultaneamente que A = ~A. por fim, falei que devo dois chopes e não que os bebi... se os tivesse ingerido, entenderia de uma vez por todas a função consumo keynesiana que sustenta que o consumo é uma função da renda, quando -sóbrio- entendo que o consumo é uma função da receita, tanto é que os pobres podem consumir mesmo sem ter renda, não é isto? mas, mais que isto, os aposentados consomem e não ganham renda! aposentado ganha transferência do governo. ah, esta common parlance.
DdAB

5 comentários:

Anônimo disse...

Em meio do complexo emranhado de deduções e lógicas economicas, me pego pensando que nada disso tem sentido por ser tão logico.

Os determinantes do investimento podem ser tanto a taxa de juros, quanto a mulher do empresário que no dia anterior comprou uma sensual lingerie.

Enfim, nao conte para ninguém. Mas nós nao sabemos de tudo.

Abraços

Chutando a Lata disse...

Me chamou atenção em seu exemplo a trajetoria da relação capital/produto. Como sabemos, a economia americana, exemplo de crescimento sustentável, tem sua relação capital/produto estável e num patamar aceitável.

Chutando a Lata disse...

Passo aqui depois de um certo tempo e pelo que pude entender você concorda comigo que esse negócio de que poupamos pouco é simplesmente piada. Além do mais esquecem que a poupança tem que ser um ato voluntário. Como não estou a fim de poupar mais do que já poupo (mesmo estando na idade de só gastar), creio que a poupança terá que vir por aumento de impostos ou mais endividamento.

... DdAB - Duilio de Avila Berni, ... disse...

Caro Chutando a Lata:
E eu passo aqui mais de dois anos depois do segundo comentário sem resposta. Não costumo deixar comentários a minhas postagens sem resposta. Neste caso, já vou também pedindo desculpas ao Daniel.

E que posso dizer? Chegando à política econômica: não vejo saída para esta crise de estagnação brasileira a não ser a reforma tributária que crie fundos para a ampliação do crédito aos produtores. Deveria ter dito "saída decente", pois já aprendemos com M. da Conceição Tavares que o Milagre Brasileiro emergiu de um processo de grande concentração da renda.
Obrigado e desculpem o atraso (se é que virão a percebê-lo).
DdAB

... DdAB - Duilio de Avila Berni, ... disse...

Parece que não perceberam...